Estádio Juscelino Kubitschek de Oliveira

Por Carlos Oliveira


Il campo di foot-ball

“Uma festa que nenhum italiano pode perder”, anunciava o Araldo Italiano em 2 de setembro de 1923. E não era para menos a empolgação do jornal, escrito na lingua madre e destinado à comunidade de imigrantes de Minas Gerais. Dentro de algumas semanas, a Societá Sportiva Palestra Itália inauguraria seu estádio próprio no Barro Preto, com direito a muita celebração e um amistoso contra o Flamengo, a cereja do bolo das festividades. Nas palavras do mesmo Araldo: uma bellissime feste dos operários do Barro Preto.


Araldo Italiano - 02 de setembro de 1923

O jornal Araldo Italiano anuncia inauguração do campo do Palestra

Nascido em janeiro de 1921, o Palestra mandava suas partidas no Prado Mineiro, assim como outros clubes da capital. Com capacidade para 1.500 espectadores sentados, o estádio só tinha um problema: ficava no bairro Calafate, distante a três quilômetros do centro urbano da cidade. A dificuldade de se locomover para o Prado e a vontade de ter um campo próprio motivaram os clubes a construírem seus próprios estádios.

Como era comum naquela época, a prefeitura cedeu um lote no Barro Preto para que o Palestra construísse a sua casa. No mesmo ato, o clube Ipanema também foi beneficiado com um terreno no Carlos Prates. O lote palestrino ficava entre as ruas Ouro Preto, Guajajaras, Araguari e a Avenida Paraopeba (atual Augusto de Lima) (Ver mapa).


Mapa de BH em 1950

Estádio do Barro Preto, com Praça Raul Soares ao fundo (1950). Acervo José Góes

A pedra fundamental foi lançada no primeiro aniversário do Palestra, em 2 de janeiro de 1922. As obras, por sua vez, começaram em junho, quando o clube já contava com uma empresa contratada. Mas a empreiteira não ficou sozinha nessa. Para o projeto sair do papel e o clube ganhar sua casa, todos ajudaram. Além dos sócios, que contribuíram com mão de obra e recursos, o clube contou com a ajuda de jogadores e torcedores, operários em sua maioria.

O bairro de italianos

Localizado na região centro-sul, o Barro Preto é considerado um dos bairros mais tradicionais da cidade. Durante a construção de Belo Horizonte, no fim do século XIX, o bairro comportou várias famílias de operários italianos, que emigraram para trabalhar na edificação da nova capital. Na década de 1920, a presença dos imigrantes continuava forte, quando os italianos correspondiam a 9% da população total da cidade, como revela Eliana de Freitas Dutra, historiadora e pesquisadora da UFMG, em seu livro Caminhos operários nas Minas Gerais.

Naquela época, os italianos fundavam suas próprias associações, escolas e até jornais, como era o caso do Araldo. Estas ações eram vistas como uma forma de a comunidade manter a sua identidade com o país, a famosa “italianidade”. No mesmo Barro Preto foi onde surgiu um dos embriões do Palestra: o Yale Athletic Club, cujo plantel era formado por muitos italianos.


Araldo Italiano - 31 de julho 1923

Araldo Italiano era um periódico da colônia italiana em Belo Horizonte

Para Georgino Neto, professor de Educação Física da Unimontes, a construção do estádio palestrino era uma forma de o clube aumentar sua identificação com a colônia italiana. De acordo com o pesquisador, que em seu doutorado se dedicou a estudar o histórico dos principais estádios da cidade, o Palestra vinha tentando se afirmar no seio esportivo da capital, enxergando na construção de um estádio uma forma de “marcar posição” quanto à presença entre os clubes maiores e melhores estruturados. Um campo próprio também representava uma maior visibilidade concreta do clube na cidade.

Início Precoce e Festa


Palestra x Atlético

Estádio recebendo clássico entre Palestra e Atlético. Data e autor desconhecidos

O estádio começou a ser usado antes mesmo de as obras terminarem. Em agosto de 1922, por decisão da Liga Mineira, o campo foi escolhido para abrigar os jogos da série B do Campeonato da Cidade. Como esta divisão não precisava ser disputada em espaços murados ou com bilheterias, o campo do Palestra já poderia receber seus primeiros matches.

Em junho do ano seguinte, também por decisão da federação, foi acordado que os estádios do América e do Barro Preto seriam os campos oficiais para a disputa do Campeonato da Cidade de 1923. De acordo com o Almanaque do Cruzeiro, organizado pelo jornalista Henrique Ribeiro, as instalações do Barro Preto ainda não estavam finalizadas, mas a Liga solicitou que já se começasse a jogar por falta de campos adequados. O Prado ficaria relegado à divisão inferior da competição.

Em seu estádio, o Palestra estreou com vitória. Pelo Campeonato da Cidade, em 1º de julho, o escrete ítalo-brasileiro bateu o Palmeiras de Belo Horizonte por um expressivo 6 a 2. Com o estádio próximo de ser concluído, chegava a hora de planejar a inauguração oficial. Ao fim das obras, o “estadinho do Palestra”, como viria a ser conhecido, teria arquibancadas de madeira, tanto nas sociais quanto nas gerais, e seria capaz de suportar 5 mil torcedores.


Palestra x Flamengo

Partida que marcou a inauguração do estádio. Palestra 3x3 Flamengo. Autor desconhecido

As festividades da inauguração começaram no dia 20 de setembro, data em que se celebra a unificação da Itália. Com festas e quermesses que começavam às 19 horas e continuavam nas noites seguintes, a celebração se estendeu até o dia da partida inaugural. No domingo, 23, Palestra e Flamengo travaram uma disputada partida, que terminou em empate por 3 a 3. Benevenuto, Agenor e Mário marcaram para os cariocas e Heitor e Ninão (duas vezes) assinalaram para o time belo-horizontino. Devidamente inaugurado, o estádio do Barro Preto estava pronto para ser a casa oficial do Palestra Itália.


FT: Palestra x Flamengo

Os Fantoni: a famiglia que fez história

Quem foi ao estadinho no dia 10 de agosto de 1930 assistiu a uma goleada de 8 a 0 sobre o Sete de Setembro. O estonteante placar não só garantiu ao Palestra o seu tricampeonato da cidade como sacramentou mais uma campanha com 100% de aproveitamento, a segunda consecutiva. Naquela tarde, brilhou a estrela do atacante João Fantoni, o Ninão, que alterou o score em quatro oportunidades.


Os Fantoni

Os primos Ninão e Niginho e o ponta-esquerda Bengala. Autor desconhecido

Dono da maior média de gols do Palestra/Cruzeiro (167 gols em 127 jogos), Ninão fez parte de uma família marcada nas histórias do estádio e do clube. Na década de 1920, jogava ao lado do irmão Leonídio, apelidado de Niginho, e do primo Ottavio, o Nininho. Os ítalo-brasileiros Fantoni encantaram os torcedores palestrinos e foram peça-chave para o momento do clube no fim da década.

O bom desempenho foi logo percebido no velho continente. Em processo de reformulação, a Lazio resolveu buscar no Brasil peças para o seu novo elenco. Foi quando, em 1930, o clube italiano contratou Ninão e Nininho, colocando-os em um barco junto a outros dez ítalo-brasileiros. Niginho desembarcou em Roma pouco depois, em 1932.

Os mineiros ficaram pouco tempo na Itália, onde se viviam tempos fascismo em meio à ditadura de Benito Mussolini. Nininho teve um final trágico. Em uma partida contra o Torino, em 35, o jogador feriu o nariz. O ferimento evoluiu para uma infecção, que gerou uma septicemia, caracterizada por uma inflamação em todo corpo. Otávio Fantoni, o Nininho, faleceu em fevereiro daquele ano, em Roma.


Os Fantoni na Lazio

Os Fantoni na Lazio. Reprodução: TV Globo

Ninão foi o primeiro a regressar à Belo Horizonte, voltando em 1933. Já Niginho retornou ao Brasil três anos depois, mas para jogar pelo Palestra Itália de São Paulo. Teve uma rápida passagem pelo Vasco da Gama e então voltou a jogar pelo Palestra mineiro.

Entre idas e vindas, os Fantoni fizeram história no Barro Preto. Depois do trio que deu início à empreitada familiar, veio Orlando, irmão mais novo de Ninão e Niginho. O atacante defendeu as cores palestrinas por dez anos e, assim como os irmãos, também foi técnico da equipe principal.

O último Fantoni a jogar profissionalmente foi Benito. Filho de Ninão, o ex-zagueiro possui uma história peculiar por trás de seu nome. Na época, o pai defendia as cores da Lazio e estava prestes a enfrentar a rival Fiorentina. “O Benito Mussolini, que era presidente do clube, chegou ao papai e falou assim: ‘se você fizer o gol da vitória, nós pagamos o parto do seu filho todinho’. Aí o papai ficou doido, né? Aí eu nasci e ganhei o nome de Benito”, contou o Fantoni, em entrevista para a TV Globo.

As memórias de Benito


Benito em 1961 pelo Cruzeiro

Cruzeiro de 1961, tricampeão mineiro. Benito é terceiro em pé, ao lado do goleiro Mussula. Autor desconhecido

Conversamos com Benito em sua casa, onde fomos recebidos pelo filho Benito Júnior, um cruzeirense fanático. Lá, o ex-zagueiro cruzeirense se recordou dos momentos vividos no estádio do Barro Preto: “Ficava cheio quando tinha jogo. Nestes dias, os carros paravam na Augusto de Lima e nas ruas do entorno, já que não tinha mais lugar pra estacionar”.

O jogador iniciou no clube nas categorias de base, em 1949. Depois de passagens pelo Universidad Central, da Venezuela, e por equipes cariocas, o zagueiro regressou à Belo Horizonte, em 1956. No entanto, voltou para jogar no Atlético, vestindo as cores que nenhum Fantoni ousara defender.


Benito na Venezuela

Benito, à esquerda, em seus momentos de “zagueiro-zagueiro”, espanando a bola em partida pelo Universidad Central, da Venezuela. Acervo pessoal


Benito no Atlético

Benito persegue o cruzeirense Aberlado, em clássico disputado nos anos 1950. Foto: Nivaldo Corrêa

Foi um alvoroço danado. Afinal, Fantoni era cruzeirense doente, né? Não podia nem pensar em jogar do outro lado”, revela Benito. No outro lado, ganhou o Campeonato Mineiro de 1956 (o penta) e o de 1958. O caso de um Fantoni com as cores alvinegras terminou no ano seguinte, quando o Cruzeiro contratou seu ex-zagueiro. No Barro Preto, Benito também levantou duas taças do estadual, participando das campanhas do bicampeonato de 1960 e do tri de 61. Encerrou a carreira jogando pelo Renascença, após uma breve volta à Venezuela, dessa vez no Deportivo Italia (atual Petare).

A relação de Benito com o estádio do Barro Preto se estendeu pelas décadas seguintes. Benito seguiu o caminho dos mais velhos e também se arriscou na função de treinador, mas nas equipes da base. Nos idos de 1970, ainda batia uma bola pelo “Raposão”, equipe de veteranos que jogava aos sábados, no Barro Preto.


Benito em casa


Benito em casa 2

Benito se recorda dos tempos de atleta. Fotos: Lucas Sousa

Quanto aos momentos vividos no estadinho, o Fantoni guarda recordações felizes, mas se aborrece com algumas questões: “Antigamente, você via muitas famílias nos estádios. Os pais tinham o costume de levar os filhos. Hoje, tem muita violência, pancadaria. Que coisa, sô, como é que mudou, né...”.

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