Estádio do América: o primeiro estádio de Belo Horizonte

Por Lucas Sousa


Esta é a terceira parte da reportagem sobre os primeiros campos de futebol de BH.
Clique aqui para ler a primeira parte e aqui para ler a segunda.

A situação dos campos de futebol em Belo Horizonte no final da década de 1910 foi evidenciada pelo jornal O Foot-Ball, em edição de 1917. Em nota intitulada A necessidade de um campo, o cronista anônimo destacava como “urgente” e de “alta gravidade” a questão dos campos da cidade, já que “para a realisação de um bom jogo, é necessário, mais que tudo, um campo com as dimensões legaes, perfeitamente nivelado e bem gramado”. Além disso, afirmava que o Prado passava “péssima impressão” para os clubes visitantes.



Jornal O Foot-Ball
O Foot-Ball destacava a precariedade dos campos de futebol em Belo Horizonte

A revista Tank ainda salientava sobre o “martyrio da poeira do [bairro] Calafate que o nariz bello-horizontino supportava a custo e o maldito acotovelamento dos bondes cheios” como pontos negativos do campo do Prado. Outrora avanço para o futebol da cidade, em pouco tempo o antigo hipódromo já não supria todas as necessidades do já considerado principal esporte de BH.

Sendo assim, quando o América anunciou a construção do seu estádio na região central, em 1921, a recepção não poderia ser diferente. “O America merece applausos por querer dotar a Capital de um confortavel ‘stadium’ e ao disciplinado campeão não negaremos o nosso apoio, assim como aos demais clubs, que honram os ‘sports’ entre nós”, dizia a Capital.

A história do estádio do América (que não tinha nome próprio) se desenrola num contexto de desenvolvimento crescente do futebol belo-horizontino. A cena do esporte na nova capital, cada vez mais estruturada e já dotada de elementos fundamentais, como clubes, público e espaço nos jornais em quantidades consideráveis, permitiu e motivou o clube alviverde a construir o primeiro estádio de futebol de Belo Horizonte.

O estádio sai do papel: da construção à inauguração

O terreno para erguer as arquibancadas já estava determinado: era o mesmo que o América havia conseguido na Avenida Paraopeba, em 1913, quando se fundiu com o Minas Gerais. A Lei nº 187, de 6 de outubro de 1920, autorizou a concessão do terreno “que atualmente ocupa ou outro que for julgado conveniente aos interesses da Prefeitura, para nele a referida sociedade estabelecer o seu campo de esportes, com arquibancadas, etc”. Em 9 de dezembro daquele mesmo ano, foi assinada a cessão do campo ao América. Estava tudo pronto para o clube iniciar as obras da sua primeira casa.

Conseguido o espaço, a diretoria americana iniciou logo as tratativas para a construção. Convocou assembleias para a semana seguinte a fim de discutir as “primeiras providências a serem tomadas para a construção do campo”, como noticiou o Diário de Minas. A publicação ainda destacava “o esforço incansável de todos os associados e o apoio de todos aquelles que sabem apreciar, com a devida justiça, o valor e as vantagens do sportismo na educação physica e moral da mocidade” como fundamentais para o prosseguimento do plano. E de fato foram.



Jornal Vida Sportiva
A seção Vida Sportiva, do Capital, detalha a construção do estádio

O América contou com a participação dos sócios e usou do reconhecimento que tinha no meio social, já que era um clube da elite, para conseguir grandes doações e cessão de equipamentos. Carlos Paiva conta na Enciclopédia do América que a diretoria conseguiu seis contos de réis de uma subvenção do “Congresso Mineiro”. O clube também limpou o cofre e investiu tudo que tinha na execução do projeto orçado em, aproximadamente, quarenta contos de réis.

As obras tiveram início em abril de 1922. A arquibancada ocupava todo o lado esquerdo da Avenida Paraopeba e media 66 metros de comprimento e 6,5 metros de largura. Elas acomodavam “folgadamente” duas mil pessoas e outras três mil poderiam assistir aos jogos da geral “relativamente confortáveis”, como avaliava o Minas Geraes. Apesar da proximidade no estádio, os públicos não se misturavam muito, já que os portões de entrada eram diferentes. A geral tinha acesso pela Rua Curityba e a arquibancada pela Avenida. Até mesmo dentro da arquibancada havia divisões. O público utilizava as escadas laterais e os oficias e sócios chegavam aos seus assentos pela escadaria central.



Estádio do América
A arquibancada do estádio do América. Fonte: Enciclopédia do América

Na parte inferior da arquibancada ficavam as acomodações do clube. Salões para recepções de oficias, reuniões de diretoria e secretaria, salão para ginásticas, toalete, dois bares, dois vestiários. O Minas Geraes também enfatiza que o espaço é “solidamente murado”, o que, nas palavras de Georgino Neto, “alterava a ordem que vigorava até então, de campos abertos e que permitiam que ‘todos’ pudessem assistir, mesmo sem a aquisição paga dos ingressos”.



Jornal Vida Sportiva 2
O jornal A Capital, de fevereiro de 21, noticia o estádio americano

Em comemoração ao centenário da independência do Brasil, o América fez sua primeira partida na casa nova em 7 de setembro de 1922, contra o Palestra Itália. As obras ainda não estavam concluídas, por isso não se considera que aquele empate em 3 a 3 foi a inauguração oficial do estádio. Isso só aconteceria no ano seguinte, em 6 de maio de 1923.

O adversário escolhido para estrear o primeiro estádio da capital foi o América-RJ. A partida, frente a um dos principais times do Rio de Janeiro e do Brasil, se transformou em um grande evento para Belo Horizonte, inclusive com a participação do então governador (e sócio do América) Raul Soares. O político foi o responsável pelo pontapé inicial do jogo, que não terminou bem para os anfitriões: 5 a 1 para o xará carioca.

Glórias e polêmica: os títulos americanos no seu estádio

O campo do América sediou diversas glórias do esquadrão alviverde. Ali o clube conquistaria mais três títulos do Campeonato da Cidade, concluindo dez conquistas consecutivas. O famoso e controverso Deca americano, iniciado ainda no Prado Mineiro, seria finalizado na nova casa, em 1925. Apesar do reconhecimento por parte da imprensa da época e de pesquisadores da hegemonia americana no período, a maior conquista do clube foi motivo de contestações.

Isso porque não há um consenso em torno do desfecho da edição de 1925. Carlos Paiva, autor da enciclopédia do clube, conta que o campeonato foi interrompido logo no início para que fosse disputado o campeonato brasileiro de seleções. O América teve 12 jogadores convocados para a seleção mineira que “massacrou” a seleção do Estado do Rio de Janeiro, por 6 a 0, na primeira fase da competição.

A essa altura o América tinha disputado apenas um jogo (vitória por 4 a 1 sobre o Athletico). O Campeonato da Cidade havia sido suspenso com apenas um jogo disputado. Segundo o autor/torcedor, vendo isso "os outros times disputantes do campeonato mineiro (Sete de Setembro, Calafate, Fluminense, Palestra, Luzitano, Palmeiras e Athletico), temendo um massacre maior do que o sofrido pelo Athletico, oficiaram à liga reconhecendo o América como legítimo campeão dada a sua inquestionável superioridade".



América 1924
Time do América em 1924, um ano antes do deca. Acervo América Futebol Clube

No entanto, nunca ficou realmente claro se tudo isso de fato aconteceu. A situação só foi resolvida em 2012, quando a Federação Mineira de Futebol, em comemoração ao centenário do Coelho, declarou, oficialmente, o título americano de 1925.

Athletico 9 x 2 Palestra: a maior goleada da rivalidade

O estádio do América, por ser o melhor da cidade, se tornou o endereço oficial para os jogos da Liga Mineira a partir de 1923. Sendo assim, todas as partidas do Campeonato da Cidade passaram a ser disputadas lá, mesmo aquelas que não envolviam o dono do espaço. Na tarde de 27 de novembro de 1927, Athletico e Palestra Itália fizeram um jogo que, mais tarde, entraria para a história atleticana, como um dos seus grandes orgulhos: a maior goleada no encontro dos rivais.

A época, Athletico x Palestra não representava a maior rivalidade da cidade, posto ocupado por América x Athletico. Além disso, era apenas o décimo jogo entre as duas equipes. O cenário de 1927 não se comparava ao dos dias atuais, quando Atlético x Cruzeiro representa um dos maiores duelos do Brasil. Porém, o contexto daquele jogo pode não ter sido tão amistoso quanto parece.

Três meses antes, em 14 de agosto, as equipes se enfrentaram no estádio do América. O Athletico venceu por 4 a 2, mas os jornais não deixaram de destacar o comportamento dos torcedores. “Nas archibancadas do lado da torcida atleticana, alguns elementos ‘indesejáveis’ começaram a cometter disturbios que provocou a reação de alguns palestrinos exaltados, chegando o conflito a tomar proporções bem desagradáveis”, noticiou o Minas Geares.



América 1924
Diario do Commercio no dia anterior ao jogo, projetando o encontro que entraria para a história

Apesar da confusão no encontro anterior, a expectativa para o jogo de novembro estava em torno do Athletico, que poderia ser bicampeão pela primeira vez. A arquibancada do estádio do América estava lotada e viu, segundo o Minas Geraes, “uma das melhores tardes do mundo desportivo” belo-horizontino. Pontualmente às 15:19 o Palestra deu a saída.

Aos 16 minutos de jogo, Mário de Castro assistiu Said para abrir o placar. Num ataque rápido, Mário de Castro foi derrubado dentro da área e Said converteu o pênalti para fazer 2 a 0. O Palestra reagiu rapidamente com Ninão finalizando forte para diminuir. O mesmo Ninão poderia ter empatado ainda no primeiro tempo, mas desperdiçou um pênalti.

O Athletico voltou com tudo para a segunda etapa. Logo aos cinco minutos, Jairo marcou o terceiro gol alvinegro. O quarto e o quinto gol ficaram por conta de Mário de Castro. Primeiro recebendo passe de Said e depois concluindo em lance de oportunismo. No embalo da eufórica torcida atleticana, Jairo anota o sexto logo em sequência. O time palestrino diminuiu a diferença com Bengala, aos 22 minutos. Mas não demorou muito para o Athletico voltar a marcar. Mario serviu Jairo duas vezes para colocar oito gols no placar. Após ataque pela esquerda, Getulinho, de cabeça, decretou a maior goleada da história do clássico: 9 a 2 Athletico.



Athletico Palestra 1927
A maior goleada da história do confronto

O Minas Geraes destacou as atuações de Perigoso e Chiquinho na defesa e de Jairo, Said e Mário de Castro, o Trio Maldito, no ataque. A publicação ainda diz que o Palestra “jogou muito no primeiro tempo e fraquejou no segundo, chegando à desorientação no final da pugna”. Apesar da goleada, Geraldo, Rizzo, Osti, Bengala e Ninão receberam menção como os melhores palestrinos. Enquanto Nani e Pararaio, jogadores de lado, foram o ponto fraco da equipe.

A necessidade de um mercado e o fim do estádio

A histórica partida entre Athletico e Palestra Itália foi o último grande momento vivido no estádio do América. Ainda naquele ano de 1927, o prefeito Cristiano Machado decidiu transferir e expandir o Mercado Municipal. O antigo mercado havia sido fundado em 1900, período em que Belo Horizonte abrigava pouco mais de 13 mil habitantes, e ficava na praça Vaz de Melo, próximo ao atual Terminal Rodoviário de BH.

A cidade crescia rapidamente, e, na década seguinte, a capital mineira chegou aos 40 mil habitantes e o Mercado foi expandido para comportar três novos compartimentos acondicionados. No final dos anos 20, o espaço já não atendia aos mais de 100 mil belo-horizontinos. A proposta do prefeito foi prontamente aprovada pelo governador Antônio Carlos de Andrada, que considerava o Mercado Municipal “mal instalado, insuficiente para o movimento actual da cidade e com higiene precária”.

Em mensagem ao Conselho Deliberativo, o prefeito Cristiano Machado explicou a situação: “Annunciei-vos o anno passado para localizar o novo Mercado no quarteirão em que está sendo levantado, fez a Prefeitura um entendimento com a sociedade sportiva America Foot Ball Club, em virtude do qual se comprometteu a dar à mesma sociedade um outro campo com as bemfeitorias existentes no que tomava a seu domínio(...). O compromisso assumido como vêdes, foi consequencia de uma necessidade imperiosa. No entanto, elle resultará benefico, trazendo à vida urbana mais um campo sportivo modelar, que tanto realce poderá dar à educação physica da mocidade”.

No dia 7 de setembro de 1929, exatos sete anos após a primeira partida no estádio do América, o Mercado Central era inaugurado. Hoje uma pequena placa, situada na entrada da Avenida Augusto de Lima, preserva a memória do primeiro estádio de futebol de Belo Horizonte.



Placa Mercado
Placa inaugurada no ano do centenário americano lembra o primeiro estádio do clube. Fonte: América Futebol Clube